Dia desses um colega do trabalho lembrou do relato detalhado que eu tinha feito de um sanduiche de filé. Eu já nem lembrava mais desse sanduiche e sequer imaginava que ele marcaria assim a memória de alguém. Daí ressuscitei o sanduiche ontem e cá está ele, agora com imagem.
O original tinha queijo gorgonzola no lugar do cream cheese, e a salada de rúcula tinha umas lascas de pêra bem maduras. Delícia.
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Enquanto tomava café da manhã com a Cau sábado passado, não sei sobre o que conversávamos quando ela engatou uma lembrança atrás da outra e acabou achando um veio de memórias muito antigas que nem ela própria sabia que ainda existiam. A infância, a casa sem luz, a mãe secando costela no sol por uma semana até ficar bem preta, o pai chegando de bicicleta com abacaxi, inhames e abóboras amarrados em cordas. Cada fatia de inhame cozido enchia um prato e era uma refeição completa. O abacaxi tinha que comer logo e cozinhava-se feijão todos os dias, porque não tinha geladeira naquele tempo. Nem luz. O feijão, a propósito, era também sozinho uma refeição completa. Ia dentro dele toda sorte de legume que se conseguisse arranjar. Quanto melhor financeiramente fosse a condição da família, mais variados eram os legumes no feijão. Como a família da Cau era pobre mesmo nos padrões da caatinga pernambucana, no feijão da mãe dela ia ainda menos coisas do que no das vizinhas. Sempre que podia, ela compensava com minúsculos nacos que ia partindo daquela costela que secou ao sol. A cada panela de feijão, ia um pedacinho com mais osso e sebo do que carne propriamente. Mas isso era suficiente pra dar um sabor que a Cau nunca conseguiu reproduzir anos depois, com luz e geladeira já no sudeste. E roer o cotoco da costela era privilégio do patriarca. Nesse feijão, ela repetiu algumas vezes que lembrava da abóbora bem vermelha do tipo sergipana, e tinha também quiabo, um quiabo inteiro que ela nunca descobriu como que a mãe fazia pra tirar a baba. O quiabo ficava inteiro e sem baba. E não tinha muita coisa pra temperar, possivelmente só colorau. O tempero é outro mistério que a Cau nunca descobriu. Mas tinha um gosto que fez os olhos dela brilharem só de lembrar.
Daí que obviamente eu passei a semana toda com esse feijão na cabeça. Igual ao colega do trabalho que encasquetou com o meu sanduiche de filé, eu não tirei mais da cabeça o feijão da Cau. Aproveitei meio saco de feijão vermelho que estava há tempos esperando uma carne seca que eu nunca tinha disposição pra comprar, e foi com ele a minha livre adaptação do “feijão da infância da Cau”.
_ um pedaço de abóbora bem vermelha
– um chuchu
– meia cebola picada e meia cabeça de alho
– salsa, cebolinha, louro, sal, pimenta do reino e curry
– duas colheres de sopa de manteiga
Fiz um refogadão com isso aí e não coloquei água, só tampei a panela e deixei no fogo baixo.
O feijão vermelho amolece rápido. Bastou uma hora de molho e 15 minutos na pressão. Cozinhei ele junto com duas beterradas inteiras com casca e tudo e meia cebola também inteira. Passados os 15 minutos na pressão, ele não está totalmente cozido, mas esse é o ponto pra despejá-lo na panela dos legumes refogados, que também ainda estão duros. Separei as beterrabas pra comer tipo salada, fatiadas com azeite. O restante, deixei terminar de cozinhar junto.
Na hora do almoço, adivinha? A Cau comeu e não lembrou de absolutamente nada da conversa de uma semana antes. Meu feijão não bateu nem na trave.